Pular para o conteúdo principal

Postagens

Crenças

Em um dia qualquer de trabalho, um colega que sentava ao meu lado chegou de manhã com um livro velho nas mãos. Me mostrou e perguntou se eu queria, pois ele já tinha uma edição daquele título. Havia encontrado no térreo da empresa, em uma prateleira em que os funcionários costumavam deixar livros que não queriam mais. Era No caminho de Swann, de Proust. Aceitei, já que não tinha o livro, mas um pouco descrente de que leria logo, pois andava na correria. Ao abri-lo, tive uma surpresa. Na folha de rosto, estava escrito à caneta provavelmente o nome de sua primeira dona, Rita, acompanhado de uma data: 06/06/81. Exatamente o dia em que nasci. Até prefiro ler livros mais novos, mas, depois dessa coincidência, topei em começar a ler este exemplar de páginas amareladas, manchadas e cheirando a velho. Ainda não terminei a leitura. Fiz paradas e retomadas. Em alguns momentos de extensa descrição, cheguei a me perguntar se deveria mesmo seguir, mas o meu encanto com a fineza de pensamento e d
Postagens recentes

pina e a arte

Dos muitos depoimentos que me marcaram no documentário Pina, de Wim Wenders, um foi especial. "Você precisa enlouquecer mais", reproduziu uma das bailarinas do filme a frase que certa vez ouvira de Pina. Da mesma forma que a frase ficou guardada com a bailarina talvez fique guardada comigo. Consigo ver muito sentido nesta fala ao pensar em dança, ainda mais quando lembro da cena do filme em que uma das bailarinas salta em direção ao chão como em um mergulho e, totalmente de ponta cabeça, é segurada por um dos bailarinos um pouco antes do temido final de seu percurso. A cena mostra um exemplo extremo de confiança, coragem e beleza. Um momento de entrega em que talvez o objetivo final seja apenas arte. Será que vem daí a beleza da arte? Da entrega corajosa do artista, do mergulho nas emoções, que no dia a dia são tão emolduradas e contidas? O que Pina Bausch fez é um exemplo para qualquer tipo de arte. É preciso enlouquecer, libertar-se das amarras construídas ao longo da vid

caixas brancas

Quando minha tia voltou de uma viagem à Europa, em 90, trouxe, entre muitas coisas, uma boneca para a minha prima. Não era uma boneca qualquer. Era daquelas que considerávamos chiques e as quais tínhamos, então, de tratar com todo o cuidado possível. Praticamente não era uma boneca de brincar, e sim, de enfeitar. Se não me engano, era feita de material que quebrava, talvez porcelana. Tinha o vestido de tecidos nobres para uma boneca, cheio de delicadezas e rendas. O rosto era bem feitinho, com traços finos, o que considerávamos exemplo de uma beleza europeia. Não me lembro ao certo da sua cor de cabelo, nem da cor de seu vestido; talvez fosse amarelo. Mas não esqueço da caixa em que a boneca veio: mais ou menos do tamanho de uma caixa de sapatos, de papel duro e branca. Branca, branca, sem nada escrito, sem um número, uma palavra, um logotipo. Na minha experiência de criança, achei aquilo o máximo da sofisticação, se é que tal conceito já existia na minha cabeça. Era lindo. Uma bonec

alemão

O dia em que o encontrei considerei um dia de sorte. Estava cansada dos pedreiros enrolados e picaretas que costumavam prestar serviço no meu prédio. Mas, mesmo com poucas esperanças, fui perguntar ao porteiro se ele conhecia alguém que poderia pregar umas prateleiras e um varal, além de fazer outros servicinhos pendentes no meu apartamento. Foi quando ele apareceu. E logo o porteiro falou: "Acho que o Alemão pode". E voltando-se para ele: "Não pode, Alemão?" Alemão era diferente dos outros. Forte, largo, galego, parecia ter 1,70 de altura x 1,70 de largura. Careca, fazia-me lembrar do tio Fester da família Addams, porém, tinha uma generosidade em seu falar. Combinamos um dia para ele apaecer em casa. No dia marcado, Alemão atrasou. Os porteiros me informaram em qual apartamento ele fazia a reforma. Fui até lá. Com um moço, seu ajudante, ele trocava o piso de um apartamento vazio. Fazia o trabalho descalço, acentando aqueles grandes pisos de cerâmica no chão. S

ao senso comum

Enquanto o ônibus estava parado no semáforo vermelho, o motorista aproveitou para sair do ônibus rapidamente. Voltou com um copo de café para o cobrador. Lembrei que uma amiga minha já havia contado: eles tinham o costume de descer naquele ponto para buscar água no posto de gasolina. O cobrador perguntou: "Está bom?". E o motorista respondeu, sorrindo: "Não sei, não experimentei antes para saber!". Bem humorado voltou ao volante e o cobrador começou a tomar o seu café, em um copo descartável. "Mas está bom", continuou o cobrador com o diálogo. "É, está melhor que antes", completou. O motorista voltou-se para trás, entendendo. "É, antes eram eles que faziam. Agora são umas mulheres que estão fazendo". "É, está bem melhor", disse o cobrador. Olhei pela janela e observei o posto de gasolina: duas ou três mulheres frentistas. Nenhum homem no local. "Será que foram todos substituídos por mulheres?", pensei. E o motorista

tem sobrando?

Desci do ônibus, no meio do caminho entre Augusta e Consolação. Por qual das duas seguir? "Ah, Consolação de novo, não". Direcionei-me para a Augusta. Pela calçada, passo em frente a um homem, velho, de barbas compridas e brancas, sentado no chão. Olho discretamente para ele. Não queria que ele percebesse que eu o queria olhar. Queria disfarçar minha curiosidade. Percebi que foi em vão quando escutei algo como: "Tem sobrando?". Não sei ao certo se foi isso que ele falou. Só sei que em centésimos de segundos eu já estava com uma expressão de quem pede clemência, respondendo: "Não, não tenho". Com a mesma velocidade, voltei o rosto a para frente, continuando a caminhada. O gesto foi rápido, mas a reverberação em meu coração foi mais lenta. Queria que fosse ignorado o fato de que eu estava em pé e ele sentado no chão sujo. Queria que não me fizesse pensar se eu tinha ou não algo sobrando. E se, em relação a ele, eu tinha algo sobrando. E o pior é que o homem

a lebre e a tartaruga

Com o sono que acordei hoje, qualquer sapato que pensava em colocar soava como um esforço a mais na minha jornada. Depois de muita relutância, pois teria de romper com o estilo habitual do meu trabalho, resolvi colocar um tênis. Andando ligeira pela Augusta, pois a dificuldade de acordar e a indecisão pelo calçado me atrasaram, de repente me deparei com obstáculos no caminho. Além das pessoas que esperavam o ônibus na calçada, um casal contribuía para tomar todo o espaço restante. Tive que seguir atrás deles, porém percebi que o ritmo dos dois estava muito lento. Olhei para baixo e vi parte do salto da moça, de tamanho exagerado. Era tão alto que dava espaço até para enfeitinhos. Era preto com bolinhas brancas. E com esforço quase sobre-humano a moça tentava se deslocar sobre eles por essas calçadas revoltantemente estragadas da região da paulista. (Se na Paulista já é assim, imagine em outras regiões da cidade). Solidarizando-se com ela, o namorado a ajudava, como alguém ajuda uma vel