O dia em que o encontrei considerei um dia de sorte. Estava cansada dos pedreiros enrolados e picaretas que costumavam prestar serviço no meu prédio. Mas, mesmo com poucas esperanças, fui perguntar ao porteiro se ele conhecia alguém que poderia pregar umas prateleiras e um varal, além de fazer outros servicinhos pendentes no meu apartamento. Foi quando ele apareceu. E logo o porteiro falou: "Acho que o Alemão pode". E voltando-se para ele: "Não pode, Alemão?"
Alemão era diferente dos outros. Forte, largo, galego, parecia ter 1,70 de altura x 1,70 de largura. Careca, fazia-me lembrar do tio Fester da família Addams, porém, tinha uma generosidade em seu falar. Combinamos um dia para ele apaecer em casa.
No dia marcado, Alemão atrasou. Os porteiros me informaram em qual apartamento ele fazia a reforma. Fui até lá. Com um moço, seu ajudante, ele trocava o piso de um apartamento vazio. Fazia o trabalho descalço, acentando aqueles grandes pisos de cerâmica no chão. Seus pés, grandes, gordos, caludos, estavam cobertos de um pó fino, esbranquiçado. Deixou seus assistente continuar o serviço e, para visitar minha casa, calçou seus chinelos respeitosamente.
Para fazer todo o serviço, Alemão passou três dias pela minha casa. Fez uma revolução. Consertou até o que eu não imaginava. Além de pregar o mini varal e as prateleiras, arrumou a porta do armário da cozinha, as tomadas, mexeu na fiação elétrica, apertou os parafusos da cama e ainda me deu instruções para arrumar os puxadores do armário e das gavetas. Tudo com vontade e energia. A sua posição ao apertar um parafuso na parede, o modo como transferia seu peso para a frente pareciam ser totalmente pensados para que seu corpo se tornasse uma perfeita extensão da ferramenta que usava, fosse uma chave de fenda ou uma furadeira.
Queria deixar as prateleiras bem firmes, então pediu que eu comprasse buchas raiol, que dariam mais segurança, já que considerava as paredes muito fraquinhas. As buchas raiol praticamente se ancoravam na parede, o que deixou o negócio tão firme que até Alemão não conseguiu apertar os parafusos manualmente. Teve que voltar outro dia com sua furadeira de apertar parafusos. Comentei:
"É, Alemão. Agora essas prateleiras não saem nunca mais..."
O jeito com que respondeu me deu a imoressão de que, para ter minhas prateleiras de volta, provavelmente eu teria que levar a parede junto...
Com Alemão era assim: tudo era firme, forte, era pra valer.
E quando parecia que ele estava só prestando atenção em seu trabalho, voltou-se para o meu namorado e falou:
"Você não se incomoda se eu fizer uma pergunta?"
Ele queria saber se meu namorado tinha bronquite, pois estava ouvindo sua respiração difícil.
"Não, é rinite", falamos.
Alemão aproveitou para dar uma receita de remédio para bronquite que uma velha tinha dado para ele quando era menino. Por incrível que pareça Alemão já sofrera de bronquite quando menino e dizia ter sido curado pela receita preparada por essa velha de Mato Grosso do Sul, de onde ele vinha. Explicou duas vezes a receita, pois eu pedi detalhes. Tinha que abrir o casco do boi, pegar o tutano e cozinhar. Depois tinha que peneirar e jogar o líquido no café todos os dias, durante não sei quanto tempo.
"Mas tem que ser no café", reforçava.
A mulher e o filho de Alemão estavam no Mato Grosso do Sul. Ele vinha periodicamente para São Paulo fazer serviços. Seu assistente ainda estranhava a cidade grande. Comentou que ainda não tinha se acostumado e que achava os apartamentos daqui muito pequenos. Também evitava pegar o elevador.
Enquanto pregava o varal, Alemão me contou que voltaria para sua cidade para ficar bastante tempo. Sua mulher iria fazer uma cirurgia.
Perguntei do que era a cirurgia.
Ele interrompeu o que estava fazendo, voltou-se para mim, olhando fixamente, com ar sério:
"É de ursa".
Voltou então ao varal.
Quando o serviço acabou, Alemão cobrou mais barato do que eu esperava. Desejei melhoras à sua mulher.
Uns dias depois, à noite, eu entrava no meu prédio quando meu namorado viu Alemão lá fora. Estava sentado cabisbaixo. Parecia chorar. Naquela noite quente, o brilho da lua atingia tudo, inclusive Alemão, sentado na muretinha, desolado, deixando triste o seu redor. Pensei se poderia ser alguma notícia da sua mulher. Meu coração partia ao ver aquela muralha desmoronada, os pés de havaianas no chão. Depois disso não o vi mais. Sabendo que fazia muitos serviços para o prédio, resolvi perguntar ao porteiro alguns meses depois:
"Nunca mais vi", respondeu-me, sem saber me dar mais notícias.
Alemão era diferente dos outros. Forte, largo, galego, parecia ter 1,70 de altura x 1,70 de largura. Careca, fazia-me lembrar do tio Fester da família Addams, porém, tinha uma generosidade em seu falar. Combinamos um dia para ele apaecer em casa.
No dia marcado, Alemão atrasou. Os porteiros me informaram em qual apartamento ele fazia a reforma. Fui até lá. Com um moço, seu ajudante, ele trocava o piso de um apartamento vazio. Fazia o trabalho descalço, acentando aqueles grandes pisos de cerâmica no chão. Seus pés, grandes, gordos, caludos, estavam cobertos de um pó fino, esbranquiçado. Deixou seus assistente continuar o serviço e, para visitar minha casa, calçou seus chinelos respeitosamente.
Para fazer todo o serviço, Alemão passou três dias pela minha casa. Fez uma revolução. Consertou até o que eu não imaginava. Além de pregar o mini varal e as prateleiras, arrumou a porta do armário da cozinha, as tomadas, mexeu na fiação elétrica, apertou os parafusos da cama e ainda me deu instruções para arrumar os puxadores do armário e das gavetas. Tudo com vontade e energia. A sua posição ao apertar um parafuso na parede, o modo como transferia seu peso para a frente pareciam ser totalmente pensados para que seu corpo se tornasse uma perfeita extensão da ferramenta que usava, fosse uma chave de fenda ou uma furadeira.
Queria deixar as prateleiras bem firmes, então pediu que eu comprasse buchas raiol, que dariam mais segurança, já que considerava as paredes muito fraquinhas. As buchas raiol praticamente se ancoravam na parede, o que deixou o negócio tão firme que até Alemão não conseguiu apertar os parafusos manualmente. Teve que voltar outro dia com sua furadeira de apertar parafusos. Comentei:
"É, Alemão. Agora essas prateleiras não saem nunca mais..."
O jeito com que respondeu me deu a imoressão de que, para ter minhas prateleiras de volta, provavelmente eu teria que levar a parede junto...
Com Alemão era assim: tudo era firme, forte, era pra valer.
E quando parecia que ele estava só prestando atenção em seu trabalho, voltou-se para o meu namorado e falou:
"Você não se incomoda se eu fizer uma pergunta?"
Ele queria saber se meu namorado tinha bronquite, pois estava ouvindo sua respiração difícil.
"Não, é rinite", falamos.
Alemão aproveitou para dar uma receita de remédio para bronquite que uma velha tinha dado para ele quando era menino. Por incrível que pareça Alemão já sofrera de bronquite quando menino e dizia ter sido curado pela receita preparada por essa velha de Mato Grosso do Sul, de onde ele vinha. Explicou duas vezes a receita, pois eu pedi detalhes. Tinha que abrir o casco do boi, pegar o tutano e cozinhar. Depois tinha que peneirar e jogar o líquido no café todos os dias, durante não sei quanto tempo.
"Mas tem que ser no café", reforçava.
A mulher e o filho de Alemão estavam no Mato Grosso do Sul. Ele vinha periodicamente para São Paulo fazer serviços. Seu assistente ainda estranhava a cidade grande. Comentou que ainda não tinha se acostumado e que achava os apartamentos daqui muito pequenos. Também evitava pegar o elevador.
Enquanto pregava o varal, Alemão me contou que voltaria para sua cidade para ficar bastante tempo. Sua mulher iria fazer uma cirurgia.
Perguntei do que era a cirurgia.
Ele interrompeu o que estava fazendo, voltou-se para mim, olhando fixamente, com ar sério:
"É de ursa".
Voltou então ao varal.
Quando o serviço acabou, Alemão cobrou mais barato do que eu esperava. Desejei melhoras à sua mulher.
Uns dias depois, à noite, eu entrava no meu prédio quando meu namorado viu Alemão lá fora. Estava sentado cabisbaixo. Parecia chorar. Naquela noite quente, o brilho da lua atingia tudo, inclusive Alemão, sentado na muretinha, desolado, deixando triste o seu redor. Pensei se poderia ser alguma notícia da sua mulher. Meu coração partia ao ver aquela muralha desmoronada, os pés de havaianas no chão. Depois disso não o vi mais. Sabendo que fazia muitos serviços para o prédio, resolvi perguntar ao porteiro alguns meses depois:
"Nunca mais vi", respondeu-me, sem saber me dar mais notícias.
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