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Crenças

Em um dia qualquer de trabalho, um colega que sentava ao meu lado chegou de manhã com um livro velho nas mãos. Me mostrou e perguntou se eu queria, pois ele já tinha uma edição daquele título. Havia encontrado no térreo da empresa, em uma prateleira em que os funcionários costumavam deixar livros que não queriam mais. Era No caminho de Swann, de Proust. Aceitei, já que não tinha o livro, mas um pouco descrente de que leria logo, pois andava na correria. Ao abri-lo, tive uma surpresa. Na folha de rosto, estava escrito à caneta provavelmente o nome de sua primeira dona, Rita, acompanhado de uma data: 06/06/81. Exatamente o dia em que nasci.

Até prefiro ler livros mais novos, mas, depois dessa coincidência, topei em começar a ler este exemplar de páginas amareladas, manchadas e cheirando a velho. Ainda não terminei a leitura. Fiz paradas e retomadas. Em alguns momentos de extensa descrição, cheguei a me perguntar se deveria mesmo seguir, mas o meu encanto com a fineza de pensamento e de observação do autor me faziam continuar e inclusive a anotar diversos trechos que não gostaria de deixar passar batidos.

Ontem marquei um trecho; na verdade, até de estilo diferente dos que tenho marcado até agora, mas um trecho que não me permitiu não fazer uma instantânea conexão com a realidade em que vivemos e com reflexões que tenho feito ultimamente. O narrador, ao citar as condutas duvidosas da filha do sr. Vinteuil e da suposta ingenuidade do pai, comenta:
“Mas de que o sr. Vinteuil conhecesse talvez a conduta da filha, não se segue que o seu culto por ela tivesse diminuído. Os fatos não penetram no mundo em que vivem as nossas crenças, não as fizeram nascer, não as destroem; podem infligir-lhes os mais constantes desmentidos sem enfraquecê-las, e uma avalanche de desgraças ou doenças que se sucedam ininterruptamente numa família não a fará duvidar da bondade de seu Deus ou da competência de seu médico.” (PROUST, 1981, p, 129, tradução Mario Quintana)

Proust separa, com exatidão, o mundo das nossas crenças do mundo dos fatos. A crença do sr. Vinteuil na boa conduta de sua filha poderia estar totalmente desatrelada dos fatos. E talvez não importasse o tanto de provas que lhe dessem de que ela andava com más companhias, do que aprontava. Se a ideia que ele tinha da sua filha estivesse apenas calcada em suas crenças, fato nenhum poderia fazê-lo mudar de ideia. Como Proust bem descreve, se as crenças não surgiram dos fatos, como os fatos poderiam então destruí-las?

E esse tipo de crença é o que noto em mim e nas pessoas ao meu redor. Noto o tempo todo. Não falo da crença em Deus, pois esta realmente está no âmbito da fé, e, por isso, para mim, é a mais digna e verdadeira. O que me incomoda é a crença disfarçada de razão, de argumentos. Argumentos e justificativas que mudam ao sabor do vento com o único objetivo de alimentar uma crença. Assim, vejo crenças na pureza de um político ou governante, ou então na de que apoiar determinada causa ou personalidade é a representação do bem, ou, ao contrário, a representação do mal. E não importam se os fatos batem na sua cara, se se revelam escancaradamente: as crenças permanecem, intactas.

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