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Mostrando postagens de 2006

Raquel e os sapatos

Minha mãe está em casa esses dias. Foi muito bom chegar em casa e me deparar com a presença dela. Algumas companhias são tão agradáveis que gostaríamos que elas ficassem por muito e muito tempo. Minha mãe, porém, volta esta semana para a nossa cidade. Mas pretendo viajar daqui um tempo e rever a família. No final de semana passado hospedei um cachorrinho maltês de uma amiga, o Shanty. Ele já tinha ficado em casa quando tinha uns seis meses. Desta última vez, completou um ano de idade. Até comprei uma coleira chiquérrima de presente para ele, que veio acompanhada de chaveiro e mais uma coleira de pescoço com um coração pendurado para gravar o nome. Peguei fácil afeição pelo bichinho. Levava-o para passear; quando estava fora, procurava não ficar o dia todo para não deixá-lo tão sozinho. Quando o entreguei aos donos, senti uma tristeza. Não estava encontrando o ossinho de plástico que ele gostava de morder e fiquei procurando-o durante um bom tempo pela casa na presença de seu dono. Quem

lenda do saco de pancadas

João agüentava desaforo de todo mundo: do chefe, dos colegas de trabalho, dos parentes, doa amigos. Porém tinha no seu quarto um saco de pancadas. Assim, ao chegar em casa, transformava em socos a sua raiva. Mais aliviado e com as mãos doloridas ia dormir. No dia seguinte, estava pronto para receber mais desaforos. E a rotina se repetia. Durante a noite, enquanto João dormia, o saco de pancadas, cansado de apanhar, chorava. Certa noite, uma fada madrinha que passava por perto em forma de estrela cadente, brilhando muito, mesmo no céu rosado da cidade poluída, ouviu seus lamentos. Transformou-o em um homem forte e bombadão que encheu João de porradas. De manhã, João acordou com o corpo quebrado, os olhos roxos e o rosto ensangüentado. Quando olhou o saco pendurado, que balançava levemente e com marcas de sangue, entendeu tudo. Mal conseguindo se locomover, foi em direção ao saco e o abraçou, caindo no choro. Nisto, o saco se apaixonou por João e João se apaixonou pelo saco. À noite, a

a gota de detergente

Estava ontem na Paulista, esperando para atravessar a Augusta. Eu e mais uma multidão de gente, pois era início de noite, e então havia aquele movimento típico do pessoal que sai em massa do trabalho. O carros não paravam de passar, e muitos deles viravam da Paulista para a Augusta de repente. Os pedestres esperavam o sinal ficar verde. Eu, que moro nesta região, sei que a luz verde do sinal de pedestres naquele pedaço é coisa raríssima. Mesmo assim esperava, junto a todos. Eis que uma moça resolve abandonar a multidão e atravessar a rua, pouco se importando se havia carros ou não. Em um instante, todo o pessoal avançou também, acompanhando-a. De repente, a rua foi tomada por pedestres caminhando nos dois sentidos. Os carros, que saiam da Paulista ar na Augusta, tiveram de se virar. Pois estava decidido que a vez não era mais deles, apesar de o sinal estar aberto. Os pedestres dominavam. Os carros ficaram parados, formando uma fila que invadia parte da Avenida Paulista. Fiquei impressi

Felisberto

Às vezes nem sentia falta dela, às vezes nem lembrava que ela existia. Chegava a pensar que havia sido melhor assim. Afinal, o que faria junto de uma pessoa que não gostara dele? Ou gostara? Bem... melhor pensar que não... Bem... e se tivesse gostado, o que adiantaria, se hoje não gostava mais, se nem sequer devia lembrar-se de sua existência, se estava apaixonada por outro? Felisberto tentava pensar em todas as coisas que havia ganhado com o término de seu namoro: mais amigos, mais tempo, havia voltado-se mais para si mesmo. Lera mais, procurara novas músicas para ouvir, assistira a diversos shows, concertos, filmes. Participara de mostras, festivais, circuitos do que quer que seja. Estava também escrevendo mais, apesar de achar que sua idéia fixa na ex o fizera perder um pouco a criatividade. Sentia-se chato, repetitivo em seus textos; só sabia falar de si mesmo, não conseguia reparar em coisas interessantes ao seu redor. Passou então, a falar de sua dor usando outros personagens. Fa

eu percebi

Hoje vou falar dum lado feio. Afinal, quem eu quero impressionar? Como quase todos os dias, saio atrasada de casa. Pretendo falar sobre isso ainda num post posterior. Saio correndo até o elevador. Se ele não está no meu andar, espero ansiosa. Saio correndo, o que provavelmente faz o porteiro se apressar para mandar abrir o portão. Do portão, saio correndo até a esquina, para atravessar a rua. Se o sinal está fechado, espero ansiosa. E às vezes, se estou distraída e vejo alguém atravessar a rua, vou junto na inércia, sem me tocar se o semáforo está verde ou vermelho. Quando me toco que está vermelho, fico brava, pois percebi que nem me toquei direito do que estava fazendo. Bem... mas então assim que o sinal fica verde, eu saio em disparada como uma boiada que passa por uma porteira aberta. Corro o quanto posso até o metrô. Quando estou muito atrasada, não me satisfaz o ritmo da escada rolante. Na escada rolante, vou descendo os degraus, e já tirando o bilhete da bolsa, para não perder t

origami

Um sapinho verde, um tsuru azul e um pássaro laranja. Os três pequenos origamis amontoados sobre a escrivaninha, do lado do aparelho de DVD. Arrumo-os com carinho e eles retornam ao seu lugar. Lembro da época em que os adquiri, há uns 4 meses: no ônibus, em uma tarde, voltando para casa. A viagem duraria cerca de uma hora. Um moço sentado a minha frente, tinha um livro nas mãos. Reconheci: ORIGAMI. Minha mãe o comprou quando eu era pequena. Trazia vários papéizinhos quadrados, fininhos e coloridos, e eu tentava seguir as explicações do livro para fazer as dobraduras. Me diverti bastante e cheguei a fazer as dobraduras do início, que eram mais fáceis. Às vezes arriscava, sem muito sucesso, aquelas tão bonitas dos níveis mais avançados. Depois o livro foi para a prateleira. O livro do moço parecia ser novo, além do mais que ele tinha ainda vários papéis coloridos. Começou então a fazer as dobraduras, e eu, atrás, observando. Reconheci os formatos. Ele não precisava consultar o livro, já

roteiro

Grande parte das mulheres que conheço adoraram filmes como O Diário de Bridget Jones ou O Fabuloso Destino de Amélie Poulain ; eu sou uma delas. Pode ser que o leitor ache um desses muito melhor que o outro, ou não goste mesmo de nenhum deles. Eu os cito porque acho que têm algo em comum, e uma dessas coisas é que ambos conseguem mostrar de forma bonita ou mesmo divertida as situações chatas, tediosas por que passamos no dia-a-dia. Conseguem até tornar admiráveis nossas esquisitices. Aquela anônima noite de sábado que você passa sozinha em casa sem que ninguém se lembre de sua existência no cinema se transforma numa bonita cena vista por milhares de expectadores. Quantos não viram Bridget Jones se entupir de sorvete em frente à TV e cantar "All by myself"? Eu, por exemplo, que numa solitária noite de sábado escrevo isto aqui no meu micro, comendo torradas com o resto de patê que sobrou da festinha de quinta-feira, estaria sendo vista com simpatia por milhares de pessoas. Por

a dança

Era um lugar para dançar. Desses só para dançar. Uma colega me apontava no meio do salão dois homens que julgava dançarem bem. Um deles era o “japonezinho magrinho”. Não achei muita graça, mas ela disse: “Parece que ele é tão leve!”. Muito tempo depois, eis que o “japonezinho magrinho” se dirige até nós. Faz uma breve inclinação com os joelhos e estende a mão. Parecia que queria dançar comigo, mas como minha colega estava do meu lado, olhei para ela. Então veio a dúvida: Afinal? Com quem ele queria dançar. Se não era com ela, fingi que sim, já que ela era a maior interessada em dançar com ele. Na música seguinte, ele dirigiu-se até mim e disse: “agora você dança comigo”. Eu não conhecia muito bem aquele ritmo, mas ele, no meio daquela barulheira, daquela confusão de casais se trombando e se pisando, ensinava-me com uma paciência de monge e com uma voz zen os passos e algumas dicas para dançar melhor. Ao final da dança, considerei-me um fiasco e até achei que ele poderia estar meio arre

pão de mel

Naquela noite, a lua estava linda. Na noite seguinte, já não estaria tanto, pois o céu estaria nublado. Mesmo assim, não fiquei muito triste nesta noite seguinte, pois sabia que a lua estava lá, apesar de não conseguir vê-la. Cheguei em casa pensando em escrever sobre um breve momento de felicidade que tivera. Logo depois desisti. Tinha a impressão de que escrever sobre momentos de felicidade dava azar. Lembrei-me do texto da joaninha fiel, que me fez pensar que muitas vezes as pessoas estão por perto sem que a gente se toque. Só que tempos depois de ter escrito o texto, percebi que muitas vezes também a gente não se toca de que certas pessoas já não estão tão perto como gostaríamos. Talvez não seja questão de azar. Talvez a questão seja simplesmente o fato de que os momentos de felicidade não duram para sempre, assim como os de tristeza muitas vezes dão lugar a momentos de felicidade. Mas sei que naquele dia, o do céu nublado, tive uma vontade louca de comer um doce. À tarde, do traba

os miseráveis

Domingo peguei um ônibus na Consolação em direção ao centro. Umas amigas me esperavam para uma peça de teatro gratuita em um teatro perto da Igreja da Consolação. Entrei no ônibus e só havia lugares no fundo. Na verdade, o fundo estaria quase vazio, se não fosse três adolescentes e um bebê. Um deles, quieto, estava só na última fileira e na frente dele, dois, sentados um ao lado do outro, conversavam. Uma menina e um menino que segurava o bebê. Reparei que o moço estava com os pés sujos e descalços. Sentei-me ao lado deles e pude ouvir trechos da conversa. Ela dizia: – Sim, minha filha ficava numa creche perto daquela favela. Mas você saiu daquela, foi para onde? – Minha mãe quis. [...] tava caindo... – Longe, né? Mas lá onde eu tô é tudo predinho. Agora é tudo predinho. Só que lá é bem nojento. Agora tá melhor. Prenderam o nojentão que mandava lá. De repente lembrei do nome da peça que iria ver: Os miseráveis. Não pude mais ouvir a conversa, pois avistei a Igreja, levantei-me e andei

a joaninha fiel

Um dia ela apareceu no meu quarto e se instalou no meu criado-mudo improvisado. Era uma joaninha maior do que as que estava acostumada a ver. Verde, meio metálica, com pintinhas pretas. Imaginei que em poucas horas sairia voando pela janela, da mesma forma que suponho ter chegado no meu quarto, que fica no décimo primeiro andar. Mas para minha surpresa, na noite seguinte ela ainda estava lá. Surpreendi-me ao encontrá-la, de madrugada, encostadinha atrás do controle remoto, talvez tentando se proteger da luz da televisão. A partir daquela noite, declarei-a minha amiga. Seria uma companhia para as noites solitárias. Na outra noite, procurei- a atrás do celular, do controle remoto, do despertador, sem sucesso. Pensei: “desta vez ela foi embora”. Quebrei a cara novamente, quando percebi que ela estava grudada atrás do criado-mudo. Comecei a acreditar que não me abandonaria tão facilmente. Certo dia sumiu novamente. Não a encontrei nos lugares que habitualmente costumava ficar. Conformei-me