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não gosto de despedidas

Ela tinha vindo da Bahia para Brasília e morava no meu apartamento. Joana era uma moça morena, tinha os cabelos pretos, lisos e compridos e só andava de saias rodadas que beiravam os joelhos. Cuidava de mim e do meu irmão. Contava histórias de sua terra, e falava de jerimum, e de outras coisas de lá. Leite para ela, era leite-de-coco. E eu ficava deslumbrada quando ela me falava que lá os pequis eram enormes, carnudos. Que maravilha seria poder comer daqueles, eu que estava acostumada a raspar com os dentes a escassa poupa dos pequis goianos, chegando quase a correr o risco de ter a língua tomada pelos espinhos de seu caroço. Lembro que ela assistia conosco ao Jornal Nacional e toda noite, no final do programa, respondia alto para para a TV: “Boa noite!”
Um dia acordamos e Joana não estava em casa. Lembro que desci ao térreo com minha mãe, e o porteiro disse que tinha visto ela ir embora com suas coisas. Deixou uma carta. Eu ainda não sabia ler, mas lembro-me muito bem da enorme lista de nomes que colocou depois de explicar os motivos pelo qual havia partido. Estes nomes eram de todas as pessoas que havia conhecido enquanto estivera conosco: nossos parentes, nossos amigos. Não disse apenas “abraço a todos”. Fez questão de nomear uma por uma as pessoas para quem mandava abraços. Fiquei impressionada como conseguiu lembrar de tanta gente. Meus pais ficaram muito tempo lendo até terminar toda a lista.
Mas porque falo de Joana agora? Fazia muito tempo que não me lembrava dela, porém sua imagem me veio à tona em uma dessas madrugadas, em que eu assistia da cama um programa na TV Cultura que exibe concertos, o Repertório. O apresentador, Artur da Távola, faz breves interrupções para falar sobre a obra que está sendo tocada e sobre o seu compositor. Gosto tanto do programa, ou melhor, da música, que gostaria que ele durasse muito mais, pois aí eu poderia dormir antes de vê-lo terminar. Porém, enquanto ele não acaba, não consigo dormir, porque quero assisti-lo até o final. É uma contradição.
Da última vez que o vi, ele estava especialmente bom. Eu torcia para que não acabasse, mas não houve jeito. E um momento a música acabou e o apresentador apareceu e disse “E agora Repertório se despede” e outras coisas mais que já não consigo lembrar, talvez pela grande tristeza que senti. Por um breve momento tive raiva dele, por acabar o programa assim, enquanto eu queria mais. Depois me senti triste, abandonada... Percebi então como eu tenho dificuldades com despedidas, mesmo que seja de um programa de TV. Foi aí que lembrei de Joana e entendi melhor porque ela falava “Boa Noite” para o Cid Moreira. Talvez lembrei dela quando Artur da Távola se despediu porque talvez no fundo, bem no fundo, eu tivesse vontade de dizer para ele: “Poxa, fica mais um pouquinho! Põe outra orquestra para tocar! ” Mas a certeza de que não me ouviria deve ter reprimido qualquer pensamento deste tipo.
Não sei dizer ao certo se Joana acreditava ou não que Cid Moreira iria ouvi-la, mas de qualquer forma respondia. Imagino que se eu fizesse o mesmo que ela me sentiria ainda mais só. Seria o mesmo que responder uma carta que nunca fosse chegar ao destinatário. E falando nisso, acho que até tentei escrever, com o meu irmão, uma carta para Joana depois que ela partiu. Nem sei se ela havia deixado endereço. Nem sei se a carta chegou, ou sequer se foi enviada.
No encerramento do Repertório, a lembrança de Joana veio junto com as de despedidas, tanto despedidas de um telejornal que volta na noite seguinte como de pessoas que dificilmente voltaremos a ver. E eu senti como é duro, para quem fica, lidar com o silêncio de quem saiu.

Comentários

Unknown disse…
Já morou sozinha? Pelo jeito mora.

Quando eu morava sozinho, ficava assistindo TV até tarde. Acho que por não ter ninguém pra conversar a gente acaba ligando a TV pra pelo menos escutar alguém falando. E no meio da noite eu programava a minha TV pra desligar sozinha e baixava o volume até ficar só aquele murmúrio. Esse murmúrio me embalava, como quando se é criança e tua mãe canta até tu dormir, ou como o som distânte do mar na minha casa de praia.

Talvez crescer tenha haver com solidão também.

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