Ele dorme na calçada. Sempre está na calçada, às vezes está do outro lado da rua. Em alguns dias, fala alto, afobado, palavras sem sentido, ininteligíveis; em alguns dias, está em silêncio ou dormindo; dia desses cantou um trecho de um pagode de dez anos atrás. Foi a primeira e única vez que entendi suas palavras. Brinca com latinhas e água de sarjeta. Lava o rosto e as mãos com água da sarjeta. Nunca o vi com uma roupa diferente da sua calça preta e blusa preta. Será que são pretas mesmo? Será que são únicas ou várias idênticas? Há poucos dias, descobri que à noite fica na rua ao lado. Uma vez, com um copo na mão, outra conversando com outro cara (a primeira vez que o vi conversando) em frente à Lanchonete Angolana.
Em um dia qualquer de trabalho, um colega que sentava ao meu lado chegou de manhã com um livro velho nas mãos. Me mostrou e perguntou se eu queria, pois ele já tinha uma edição daquele título. Havia encontrado no térreo da empresa, em uma prateleira em que os funcionários costumavam deixar livros que não queriam mais. Era No caminho de Swann, de Proust. Aceitei, já que não tinha o livro, mas um pouco descrente de que leria logo, pois andava na correria. Ao abri-lo, tive uma surpresa. Na folha de rosto, estava escrito à caneta provavelmente o nome de sua primeira dona, Rita, acompanhado de uma data: 06/06/81. Exatamente o dia em que nasci. Até prefiro ler livros mais novos, mas, depois dessa coincidência, topei em começar a ler este exemplar de páginas amareladas, manchadas e cheirando a velho. Ainda não terminei a leitura. Fiz paradas e retomadas. Em alguns momentos de extensa descrição, cheguei a me perguntar se deveria mesmo seguir, mas o meu encanto com a fineza de pensamento e d...
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